Páginas Salteadas | O Diário de Anne Frank e a compota de morango, noz-moscada e tomilho-limão Opekta
“Apercebi-me finalmente de que tenho de continuar a estudar para não ficar ignorante, para subir na vida, para vir a ser jornalista, pois é isso que quero! Sei que tenho jeito para escrever. Algumas das minhas histórias são boas, as minhas descrições do Anexo Secreto são engraçadas, grande parte do meu diário é enérgica e viva, mas… resta saber se tenho realmente talento. (...)
Quando escrevo, consigo libertar-me das preocupações. A minha dor desaparece, o meu espírito reanima-se! Mas, e esta é a grande questão, conseguirei alguma vez escrever algo grande, tornar-me-ei alguma vez uma escritora ou uma jornalista?
Espero que sim, oh, espero mesmo, porque escrever permite-me registar tudo, todos os meus pensamentos, ideias e fantasias.”
A 5 de abril de 1944, numa quarta-feira, Anne Frank partilhou este testemunho no seu diário. Ambicionava ser jornalista, um sonho que não teve oportunidade de concretizar, mas que, 59 anos mais tarde, fez com que uma rapariga de 15 anos, que sorvia as suas palavras sentada nos degraus do quintal da avó, tomasse a decisão de se inscrever no agrupamento de Humanidades, para poder seguir essa mesma carreira, honrando o desejo de uma inspiradora adolescente alemã de origem judaica, vítima do Holocausto - ela que manteve o presente mais especial do seu décimo terceiro aniversário como um documento de guerra cândido e revolucionário.
Confesso-vos que o tema do Páginas Salteadas deste mês foi, possivelmente, o mais profundo e complexo, pois é moroso ter de criar uma receita a partir de uma obra autobiográfica de alguém que morreu de doença e fome no campo de concentração de Bergen-Belsen, depois de dois anos de privações no Achterhuis, a palavra holandesa para Anexo Secreto, um espaço de três andares, com entrada a partir dos escritórios da antiga empresa de Otto Frank, pai de Anne. Dois quartos pequenos, com uma casa de banho no primeiro andar, uma sala grande e outra mais pequena, imediante ao lado, umas escadas e um sotão. De 1942 a 1944, a porta do esconderijo foi velada por uma estante, para garantir que o lugar permanecesse desconhecido.
Otto e a sua família mudaram-se para a Holanda em 1933, ano em que o patriarca da família e único sobrevivente fundou a Opekta, empresa que comercializava gelificantes com uma base de pó de frutas. O seu propósito era o de ajudar as donas de casa a confeccionar os seus próprios doces, de uma forma simples, prática e menos dispendiosa. Inclusive, foi publicado um livro de receitas que explicava, passo a passo, todo o processo de cozedura.
Corria o ano de 1944, quando Gerrit Broks, representante da Opekta, conseguiu comprar mais de 24 caixas de morangos num leilão. Embora estivessem cobertos de pó e de areia, eram uma regalia a que poucos tinham direito em tempos de guerra e de cólera. Estes sumarentos frutos escarlate costumavam ser apreendidos pelo mercado negro, de modo que foi uma investida desafiante e perigosa. Todas as pessoas escondidas no Anexo Secreto utilizaram os morangos para fazer compota caseira, relembrando os tempos áureos da fábrica de Otto. Foram semanas a comer papas de morango, sandes de morango e morangos com açúcar, e a saborear esta oferenda da natureza embrulhada numa liberdade encerrada dentro de quatro paredes.
Este acontecimento inspirou-me a criar a minha própria receita de compota de morango, noz-moscada e tomilho-limão fresco, para manter viva a memória de Anne Frank e fortalecer os laços indizíveis do amor entre uma filha e um pai que, até à sua morte, em 1980, lutou contra um mundo enraivecido e neofascista pela veracidade dos relatos de Anne.
Compota de morango, noz-moscada e tomilho-limão
Ingredientes
1 pau de canela
Uma pitada de sal
Noz-moscada q.b.
Canela em pó q.b.
Sumo de uma lima
Raspa de meia laranja
1 kg de morangos biológicos
1 colher de chá de óleo de coco
Sumo de uma laranja biológica
500 gramas de açúcar mascavado
100 gramas de açúcar de coco [Iswari]
Tomilho-limão fresco picado [Cantinho das Aromáticas]
Ao jeitinho do Ninho do Vento
Lavem e cortem os morangos em quatro metades uniformes. De seguida, coloquem-nos numa panela e adicionem os restantes ingredientes a esta infusão de aromas, cores e texturas. Levem ao lume durante cerca de uma hora, em lume brando, até obterem um ponto de estrada perfeito, envolvendo a vossa compota, sempre que possível, com uma colher de pau. No final da cozedura, será possível desenharem uma linha recta perfeita, que permitirá que o fundo do tacho fique visível. Agora basta servirem com uma fatia de pão de aveia, um ramo de tomilho fresco e uma caneca de café com leite à moda antiga, na cafeteira de esmalte.
Após a sua publicação, a 25 de junho de 1947, numa edição de apenas 3000 exemplares, por Otto Frank, o Diário de Anne Frank já foi traduzido para cerca de 70 línguas e adaptado para teatro e cinema, arrecadando prémios Pulitzer e Óscares. No início dos anos 60, o Anexo Secreto torna-se um museu, que ficou conhecido em todo o mundo como "a Casa de Anne Frank".
Nelson Mandela e John F. Kennedy foram apenas alguns das personalidades icónicas que nomearam o diário como um impactante registo para a Humanidade e um incentivo para despertar consciências e lutar contra o preconceito, a discriminação, o racismo e o ódio demonstrado sobre as minorias. Já o escritor Philip Roth descreve-a como "a filha perdida" de Franz Kafka. Para além de ter emprestado o seu nome a um asteróide, Anne Frank foi ainda considerada pela revista Time, antes da viragem de século, como uma das heroínas e ícones do século XX, sublinhando que "com o diário mantido num anexo secreto, enfrentou os nazis e emprestou a sua lancinante voz à luta pela dignidade humana".
Acompanhem as receitas das bloggers do projeto Páginas Salteadas:
Catarina Sousa, Joan of July
Vânia Duarte, Lolly Taste
Andreia Moita, Andreia Moita Blog