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Às Cavalitas do Vento

Seg | 26.08.19

Páginas Salteadas | Onde está o salmão orientado a sul, Bernardette?

Paginas_Salteadas_agosto_Whered_You_Go_Bernardette

Terça-feira, 14 de dezembro

***

Paul Jellineck

“As pessoas como tu têm de criar. Se não criares, Bernardette, vais tornar-te uma ameaça para a sociedade.”

Mais um livro aclamado pela crítica literária e cinematográfica (Finalista do Women’s Prize For Fiction 2013 e adaptado ao grande ecrã por Richard Linklater, com estreia marcada para o dia 12 de setembro), com um título que se perdeu por completo na sua primeira tradução nacional, publicada pela Editorial Teorema: “Até ao Fim do Mundo” causa-me fornicoques, não só porque revela aquele que é, talvez, o detalhe mais decisivo da trama costurada pela guionista Maria Sample (o inesperado e misterioso desaparecimento de Bernardette Fox e a sua expedição ao lugar do mapa-mundi considerado o “fim do mundo”, a Antártida), como acaba por afrouxar a originalidade de um predicado tão bem esgalhado: a arte da evasão, para o mundo e dentro de si mesma, já que o seu próprio subterfúgio reside na expressão “Where’d You Go, Bernardette?”. Na verdade, creio que o nome da protagonista, deslindada pelos olhos da filha Balakrishna (carinhosamente apelidada de Bee), não foi escolhido ao acaso; a “raposa”, ainda que astuta, poderosa e sagaz, é um animal que vagueia muitas vezes solitário, concentrando, em si mesmo, a ambiguidade e a inconstância da consciência humana.

“Com uma língua afiada e uma esperteza aguçada”, como a descreve camaleónica e imersiva Cate Blanchett, a atriz escolhida para viver na pele desta excêntrica, inquietante e lunática figura feminina. Arquiteta revolucionária em assumida e despreocupada clausura, sem acompanhar ou estimular o ritmo de criação da mente, Bernardette parece viver deprimida na cinzenta e chuvosa Seattle, o chamado “enclave urbano dos EUA” que está rodeado de megalómanas empresas, como a Amazon, o Starbucks e a Microsoft. E é precisamente do tesouro de Bill Gates que Elgin Branch, o marido engenheiro, se encarrega, participação, ao longo da história, no desenvolvimento do Samantha 2, a mais recente inovação no campo da interface cérebro-computador. Aos olhos dos vizinhos, é anti-social – a páginas tantas, segundo a própria, por não ser uma Mãe Mercedes, como as restantes progenitoras dos alunos do colégio Galer Street, uma afronta e uma ameaça para a vizinhança, especialmente para Audrey Griffin e Soo-Lin See-Segal, as hipócritas aves-raras que não descolam do seu terreno. E é por estes e tantos outros motivos que Bernardette permite crescer dentro de si a sua agorafobia, uma perturbação que acaba por potenciar a fragilidade e a inadequação da sua mente criativa ao bulício e à urgência deste mundo tecnológico (detalhe que a leva a contratar virtualmente uma secretária na Índia, destacada para tratar até da simples marcação de um restaurante do outro lado da rua). Nesse sentido, há divisões inacabadas, paredes em ruínas e tachos a suportar o peso das infiltrações – uma vez mais, as das estruturas que a abrigam, a residência de paredes e tetos extrínsecos e a morada interior, a do corpo que habita.

"Meter-me em discussões com as pessoas põe-me o coração acelerado. Não me meter em discussões com as pessoas põe-me o coração acelerado. Até dormir me põe o coração acelerado! Estou deitada na cama e chegam os batimentos desordenados, como um invasor estrangeiro. (…) Sinto a irracionalidade e a ansiedade a esgotarem as minhas reservas de energia como um carrinho de corrida a pilhas a plissar a um canto. É energia de que precisarei para me aguentar no dia seguinte. Mas fico deitada na cama a vê-la queimar-se e com isso qualquer hipótese de o dia seguinte ser produtivo. Lá se vai lavar a louça, lá se vai ir ao supermercado, lá se vai fazer exercício, lá se vai trazer os caixotes do lixo. Lá se vai a mais básica bondade humana. (...) Estou de todo, não sei o que passa comigo. Envolvi-me num conflito com a vizinha - Sim! Mais uma vez! - e desta vez, em retaliação, mandei pôr uma tabuleta e inadvertidamente destruí-lhe a casa. Foda-se, dá para acreditar?"

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Parece tudo demasiado novelesco? Bem, a norte-americana Maria Semple não deixa de ser escritora de argumentos de séries de televisão, mas a verdade é que o seu cálamo é tão veloz, chamativo, delirante e cacofónico, que não conseguimos parar de apreciar e de virar a página, uma e outra vez, em retirada, ao ritmo da variação de narrador. Intricado? Diria que os primeiros capítulos podem ser alucinantes, mas também não é assim a vida? Demasiado barulhenta? Não há mensagens de Facebook, Instagram ou WhatsApp, numa alusão à comunicação dos tempos modernos (há seis anos, data da publicação desta obra, já todas estavam no ativo, mas a aversão da autora aos seus meandros amplificava-se e daí a sua exclusão); há antes e-mails, cartas, faxes, relatórios, entradas de diário ou bilhetes deixados em cima da secretária, que, compilados por Bee, narram a odisseia da Mãe. Entre elas, e apenas entre elas, não há barreiras de comunicação, mas sim muitos sóis, como os dos Beatles.  

«Quando começou "Here comes the sun", o que aconteceu? Não, o sol não apareceu, mas a mãe abriu-se num sorriso como o sol a trespassar as nuvens. Sabem como nas primeiras notas daquela canção há algo na guitarra do George que é tão cheio de esperança? Era como se, quando a mãe cantou, também ela estivesse cheia de esperança. Até acertou nas pausas irregulares durante o sol de guitarra.»

Não poderia ter escolhido leitura mais perfeita para o mês de agosto e para o desafio do Páginas Salteadas, que me permitiu não só experimentar uma receita de granizado de melão e abacaxi, inspirada pelo gelo da Antártida e pelo “Yellow Submarine”, do quarteto de Liverpool, como permitir à Bernardette que ainda vive comigo – apesar de lhe ter dito adeus há duas semanas, para cumprimentar, pela primeira vez, José Eduardo Agualusa e regressar ao calor da literatura africana – um jantar romântico, caseiro e requintado q.b. em família, como os poucos dos quais somos espetadores na obra de Maria Semple. Apesar de todas as dinâmicas familiares e as tormentas inerentes, o amor está sempre na linha da frente. E no Ninho do Vento, o Gonçalo assume a liderança na cozinha quando o prato principal é a estrela do banquete, sobretudo quando acompanhado de quatro vinhos do Lidl (Portal do Minho – Vinho Verde Br.Alvarinho/Traj.DOC e Portal do Minho – Vinho Verde Branco Alvarinho DOC para acompanhar as entradas, Torre de Ferro – Vinho Rosé Dão DOC para o prato principal e Azinhaga d’Ouro – Vinho Tinto DOC Douro RSV13 para a sobremesa).

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Salmão orientado a sul e vegetais no horizonte
[serve duas pessoas]

Ingredientes

Sal q.b.
Salmão
2 maçãs
1 cebola roxa
Sumo de 1 lima
Sumo de 1 laranja
Passata de tomate [Mutti]
Uma colher de sopa de molho teryaki
Uma colher de sopa de molho de soja
300 gramas de cogumelos castanhos frescos

Ao jeitinho do Ninho do Vento
Em primeiro lugar, reguem o wok com óleo de amendoim e deixem o salmão, previamente temperado com sal e alho em pó, brasear. Falamos de uma leve "entaladela" no peixe. De seguida, adicionem os cogumelos, a maçã vermelha e a cebola roxa, adicionando uma redução de vinho rose. No final, adicionem passata de tomate Mutti e deixem apurar. Sirvam com um refrescante copo de Vinho Rosé Dão DOC Torre de Ferro e brindem à vida.

Acompanhem as receitas das bloggers do projeto Páginas Salteadas:
Vânia Duarte, Lolly Taste
Catarina Sousa, Joan of July
Andreia Moita, Andreia Moita Blog

*Os vinhos do Lidl foram gentilmente oferecidos pela marca para acompanhar esta refeição.

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